Fabricar arte é criar objectos contaminados por utopias que são passagens para lugares inventados que pela duração de instantes nos empurram para um espaço partilhado por muitos. Para fabricar essa arte que contamina o pensamento adoece e produz ilusões de sonhos. Sonhos que são portas giratórias que descolam o que há fixo em nós. O que é fixo e se move pode ser a vaidade, uma estátua num pedestal, ou uma simples pergunta. São forças invisíveis partilhadas pelo artista quando sobe ao palco e debaixo da luz e em confronto com os olhares dos outros. São as forças invisíveis que se movem por dentro dos espectadores e que nos empurram com os seus límpidos olhares e fulgurantes respirações. Seja o palco, um livro, uma guitarra ou uma pedra de onde nasce a arte é uma coisa inventada, distante, inacessível. Uma utopia em movimento. Imaginámos dois buracos. Um ao lado do outro. Do buraco nasceu a poça que é um buraco com água. E do molde da poça surgiu a banheira. Da banheira saíram dois homens. A banheira é um buraco e uma poça conforme está cheia ou vazia. Um homem é um homem ou cão conforme tem esperança ou não. A banheira é um buraco que foi fixado, uma ideia raptada à natureza e que se pode levar para qualquer lugar. Pode usar-se lá por casa, num lugar que chamamos a casa de banho, que é já uma casa imaginada dentro de uma outra casa. É uma casa que serve para tomar banho. Nós usámos a banheira no seu sentido utópico. Empurrámos o rio, o mar, e o homem lá para dentro. É nas banheiras que voltamos ao mar, empurrados pelo sonho de sermos um barco. É nas banheiras que morrem os revolucionários. Empurrados pelo imaginado instante de nascer outra vez lá bem perto de nós, depois do fim. Metemos a cabeça na banheira. O fim assalta-nos. O fim de todas as coisas que nos deixaram, que prendemos, que construímos parece eminente. Vivemos a angústia do fim como quem sobe uma montanha. E uma montanha é um buraco virado do avesso. Se caminharmos pelo avesso de uma montanha percorremos um buraco de ponta a ponta. Imaginámos a morte do fim e um viver sem fim. Por um átimo vislumbrámos saída. Corremos para o brilho e afinal era apenas mais um buraco. E a ansiedade não diminuiu. Aumentou a inveja e ficámos prisioneiros de um ponto fixo. Em o Fim do Fim, Amândio Anastácio e João Garcia Miguel cruzam capacidades. O tema é uma indefinível tensão entre dois mundos. O mundo que temos e essoutro que sonhamos. Em tempos inventámos as linguagens que nos ajudaram a construir esta utopia de mundo que mudou tudo à nossa volta. E que agora deixaram de servir essas linguagens. Porque impedem-nos de mudar. Porque nos aprisionam, limitam os sentidos e transformando-nos em informadores. A cada dia que passa matamos o espaço comum que hoje se confunde com redes. As nossas queridas redes são os instrumentos criados por nós os informadores que nos tornámos vítimas felizes de uma liberdade agrilhoada. A ideia inicial era uma peça sobre o fim premeditado dos objectos a que chama obsolescência programada. Uma morte prevista para os objectos. Aos poucos tornamo-nos, também, em objectos obsolescentes. O fim de todas coisas é aceite com a alegria de que a seguir há sempre um objecto novo e um recomeço. A partir escrevemos um texto que dá voz à vida aprendendo a dizer adeus. As coisas estão a mudar. Há correntes subterrâneas que nos empurram. Dançamos valsas e aos poucos transformamo-nos em cães. Somos filhos e frutos de experiências algorítmicas de empresas inovadoras. Não há nada que se possa fazer. Estamos a perder palavras. Cada dia um pouco mais. Está tudo a modificar-se radicalmente. Ão! Ãoo! Temos de aprender a modificar-nos também. Sentimonos cada vez melhor nesta vida de cão. E tudo para que haja um LUGAR PARA TODOS. O Quixote diz: quem lê um livro abandona-se num barco no alto mar corre riscos de ficar doido varrido e feliz da vida.
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